[1. me esboço um autorretrato]
Desde sua vocação para ruína, a casa não poderia encontrar outro destino senão a nudez daquelas fendas, seus vãos contra a imensidão do lá-fora, as entranhas de concreto entregues à irrupção da erva daninha e a toda a vida mínima que a acompanha. (Quem saberia dos répteis que fazem morada em seus recônditos, ou do louva-deus que em seu silêncio vê a vida e o mundo? Quem decifraria o murmúrio que cobre a casca de suas paredes, quem tocaria a ferida aberta e suas goteiras?)
A casa abriga marcas – e dorme: sobre a memória e a passagem, sobre o desejo e tudo que já não lhe pertence. A casa dorme, rende-se. Pois toda ruína conhece o sentido de ser vão. Se há lá também fantasmas, estes repousam sobretudo aquém do tempo e da casa, e só certo lampejo poderia lhes adivinhar a incólume existência.
Pois o que ademais há são travessias – e disso, em sua mudez, a casa sabe.
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[2. a ruína do monge de Manoel]
“Um monge descabelado me disse no caminho: “Eu queria construir uma ruína. Embora eu saiba que ruína é uma desconstrução. Minha idéia era de fazer alguma coisa ao jeito de tapera. Alguma coisa que servisse para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas de um homem debaixo de uma ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro. (O olho do monge estava perto de ser um canto.) Continuou: digamos a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo.” E o monge se calou descabelado.”
Manoel de Barros
em Ensaios Fotográficos, Ed. Record, 1998